SED TANTUM DIC VERBUM...

...ET SANABITUR ANIMA MEA.

domingo, 14 de novembro de 2010

O Codex Voynich

Diário querido,


Hoje eu pensava em deixar registrada nesta página uma lista das coisas tremendas que andam acontecendo por aqui, todas terríveis! Vamos mal, diário - vamos pessimamente! A tal da "escalada da violência"chega  a alturas cada vez maiores: agora, os bandidos se ocupam não mais em roubar carros, mas em incendiar carros! Jogam gasolina e tacam fogo! Imagine-se o pavor das pessoas, na antiga São Sebastião do Rio de Janeiro, hoje transformada em aterrorizante Babel sob o domínio do tráfico! Me contaram que os bandidos estariam "se vingando" do fato de terem sido expulsos para paragens mais distantes - já que a polícia, segundo também me informam, ocupou os morros de frente para o mar da zona sul! Eu não pretendo mais pisar lá, naquela que foi a minha amada cidade por tantos anos: e creio que nunca mais verei o verde da floresta em volta da casa do Alto, a não ser com os olhos da memória... Nem os macaquinhos da dona Norma, se é que ainda existem! Adeus Lagoa, adeus praias, adeus aterro do Flamengo, Urca, Cristo Redentor e Pão-deAçúcar! Adeus Guanabara, que vai morar na minha lembrança ainda com o reflexo do anúncio da Salutáris, e a garrafa que derramava luz nas águas da baía em cintilantes tracinhos! 


Bem, caro diário - como eu disse, esta ERA a idéia: uma espécie de ode à cidade perdida, ao país perdido para os orangos estúpidos que  destroem tudo sem a menor piedade. Mas não é o que farei, afinal: a lista era tão grande, as coisas a dizer tão amargas, que eu desanimei e resolvi deixar para outro dia menos melancólico do que este domingo cinzento. Hoje eu falarei do chamado Codex Voynich, um manuscrito medieval que há alguns meses ocupa parte importante da minha curiosidade, e cujos desenhos venho copiando laboriosamente, sem ter dado um único passo na direção de entender o que vem a ser aquele fascinante mistério!


A história é a seguinte, em resumo: no começo do século XX, um livreiro alemão especializado em vender raridades bibliográficas para milionários e aristocratas viajou para uma daquelas encantadoras cidadezinhas italianas, onde velhos monges de um velho mosteiro haviam posto à venda sua mais velha ainda biblioteca. Uma triste realidade, diário: os antigos pergaminhos, tão custosamente reunidos, e a tão duras penas conservados juntos, seriam separados, para passar a fazer parte de coleções esparsas, talvez para que um ricaço entediado mostrasse a seus contemporâneos mais um símbolo de status. Bom, enfim, caro diário, este é o destino das coisas, sei muito bem! E foi melhor assim, no caso - uma vez que  depois viriam duas guerras mundiais, e talvez o velho mosteiro e sua bela biblioteca fossem destruídos pela sanha ou pela ignorância dos combatentes. O fato é que o livreiro alemão, depois de ter avaliado competentemente os lotes à venda e separado os que lhe interessavam (já na certa pensando nos possíveis compradores para aqueles tesouros), num último gesto, quase como um afterthought, passou a mão num pequenino opúsculo ilustrado, escrito em caracteres que ele não conhecia, e que, como ele mesmo afirmou mais tarde, escolheu apenas "por causa das ilustrações". Que, embora não tivessem o rico e detalhado aspecto das iluminuras medievais com as quais o livreiro estava acostumado, possuíam uma certa qualidade artística que prendeu a sua atenção. Eu diria, caro diário,  que o livrinho mais ou menos obrigou o livreiro a levá-lo junto com os outros tesouros!


Bem, avante. O nome do livreiro, como você certamente já sacou, era Herr Voynich - e aquele manuscrito ficou, portanto, conhecido como o "Codex Voynich". Herr Voynich, além de alemão, era judeu - e suficientemente inteligente e rico para ter percebido, anos depois, que boa coisa não viria para os judeus da Europa por parte de Adolf Hitler e  de Joseph Stalin: e mudou-se, é claro, para a América - acompanhado, pois tomou esta providência a tempo, de sua coleção de livros raros. Folgo em dizer que Herr Voynich se estabeleceu tranquilamente em Nova Iorque e  logo estava muito bem, obrigado, com toda a sua família, uma loja no Upper East Side, seus belos livros a salvo e uma carteira de clientes invejável - e, até então, ninguém havia se interessado em comprar o Codex: e eu adivinho que Herr Voynich tinha um afeto especial pelo livrinho misterioso, seus desenhos intrigantes e seus textos escritos em caracteres desconhecidos. 


To make a long story short, o fato é que nenhum dos experts em linguística conseguiu descobrir a qual língua, viva ou morta, pertenciam os tais caracteres - e a coisa foi tomando uma proporção tamanha que começaram a aparecer diversos desses doutos senhores para se oferecer, espontaneamente, para decifrar aquilo! E nenhum conseguiu! Para justificar esta  impossibilidade, naturalmente passou-se a pensar que o texto era codificado, e portanto um caso não para os experts em linguística, apenas: mas para uma ação conjunta deles e de experts em criptografia. A segunda guerra havia trazido um considerável progresso para a ciência criptológica, e logo também apareceram pessoas abalizadas nesta área se propondo a desmantelar o segredo do manuscrito; li que um desses especialistas, depois de uma olhadela perfunctória, afirmou que "em dois dias quebraria o código". 


Mas NÃO quebrou, é claro! O Códex Voynich permaneceu impermeável a todas as tentativas feitas - e desde então  técnicos da NASA, arqueólogos do mundo inteiro, palpiteiros, tutti quanti, têm se revezado no trabalho de entender o que está escrito ali. Submeteram os textos aos computadores mais bem programados para este tipo de tarefa - e NADA! A frequência dos caracteres e  a extensão dos vocábulos indica uma "linguagem natural"- e eu ouso dizer que o cursivo em que o texto foi escrito indica mais ainda a  naturalidade espontânea, a "fluência gráfica" de quem está escrevendo sem o menor esforço e sem a menor contrafação. E mais: eu tenho certeza de que TODO o texto foi escrito pela mesma mão, embora em mais de uma ocasião. E a MESMA pessoa também fez as ilustrações. 


Eu sei disso pelo fato absolutamente SIMPLES de ter feito o mesmo tipo de coisa centenas de vezes - desenhado uma coisa qualquer e depois ter escrito à volta, ou mesmo dentro, dos limites do desenho! Sem exatamente "programar", mas fazendo isto como um processo absolutamente natural, e é claro que intencional. 


Há páginas sem desenho nenhum, só com texto - assim como há algumas  com desenhos e legendas curtas, ou somente com desenhos. O livro se divide em quatro partes: a primeira trata de plantas, de esboços de plantas, completas com seus sistemas radiculares, caules, folhas e flores; a segunda parte mostra  adoráveis ninfas - sempre mulheres - nuas e singelamente desenhadas, perambulando por sistemas de tubos e válvulas - que a mim parecem ser sistemas vegetais, não animais. A terceira parte é cosmológica, cheia de estrelas e mandalas zodiacais, no centro das quais aparecem representações dos signos conhecidos, como o Carneiro, o Leão e o Arqueiro. E a última parte me parece um receituário, ilustrado por uma porção de potes, e jarros, e fornos, e toda a parafernália necessária para se fazer e guardar remédios ou conservas. Além dos ingredientes, é claro.


Um amigo se referiu a este conjunto singular como um grimório, um livro de magia: mas, a rigor, TODO livro não deixa de ser mágico, de certa forma - uma vez que é capaz de despertar faculdades e provocar sensações e ativar pensamentos e emoções em seus leitores.  O que evidentemente não significa que seja "mau", é óbvio! Apenas que toca e impressiona, através de uma via simbológica,  um território oculto - que é a mente do leitor. Há uma certa controvérsia, a respeito disto - da diferença entre um livro "mágico"ou um que deliberadamente se proponha a "executar" isto ou aquilo; eu creio que a distinção é vaga, e entendo essas coisas apenas como BOAS ou MÁS. E, pelo mísero valor que isto tenha, creio firmemente que o pequeno Codex Voynich é definitivamente benigno! 


O interessante é que não apenas a sua linguagem não foi decifrada, mas também as plantas ali representadas com tantos detalhes são desconhecidas, nunca encontradas, inexistentes no mundo real e visível. Como também são desconhecidos os sistemas tubulares e valvulescos, e  as mandalas estreladas não se referem a constelações existentes. Antes de morrer, e por absoluta falta de compradores interessados, Herr Voynich doou o Codex que leva seu nome à biblioteca de Yale, que  fez o estupendo favor de digitalizar e devidamente disponibilizar pela Internet, para os curiosos como eu, folha por folha da pequenina maravilha.


Venho então, querido diário, me ocupando em reproduzir muitos desses desenhos, com grande satisfação e talvez algum proveito. As cores são poucas, penso eu que os pigmentos são apenas TRÊS: um azul, um vermelho e um amarelo ocre. Com a mistura dessas três cores básicas  o autor conseguiu uma razoável variação de verdes, chegando a um lindo turquesa,  e alguma variação entre o marrom e o ocre, penso eu que usando também o pigmento da tinta com a qual escreveu o texto, e que é escura. E deixou o vermelho quase sempre puro, sem misturá-lo muito. O resultado, aos meus olhos, é encantador.


Esqueci de dizer que as indefectíveis "análises de carbono14" colocam o manuscrito entre os séculos XV e XVI - mas mais uma vez algo me diz que ele foi escrito duzentos anos ANTES disto, e talvez ainda antes. Não me pergunte por que, diário amigo: eu sou notoriamente refratária, assim como o Codex Voynich, aos deciframentos deste mundo... Talvez seja exatamente ESTE o motivo pelo qual eu o acho tão extraordinariamente próximo. Foi a palavra que me ocorreu, caro diário: tão próximo quanto os moleskines que se empilham nas minhas gavetas, cheios de desenhos e textos que  serão, quem sabe, encontrados num futuro distante, reliqua de um passado perdido.E que serão, eu temo,  igualmente  indecifráveis.