SED TANTUM DIC VERBUM...

...ET SANABITUR ANIMA MEA.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Considerações felinas

Diário,


De cima deste costumado planalto que habito dá pra observar que o orangal está em tumulto: os macaquinhos sem alma e as pessoas estão, ao que parece, se desentendendo mais ativamente do que de hábito! A ruga vertical no meio da minha testa já virou uma funda vala, e estou percebendo que daquele "entrevero" não sairá boa coisa! 


Até adotei a velha posição de esfinge, para poder mais confortavelmente ficar observando o cenário: na verdade, a desconfiguração do cenário! Os oranguinhos arrancaram todas as árvores, e daqui do alto posso perfeitamente perceber que estão encurralando as pessoas para prendê-las numa espécie de curral disfarçado, para o qual algumas vão sem tugir nem mugir,  enquanto outras ainda estão paradas, olhando em volta. Há até as que se encaminham  espontaneamente, com aparente alegria, para  o cercadinho que limita o negócio: depois que os orangos alteraram a paisagem, eu suponho que elas pensem que estarão mais seguras se forem estabuladas, mesmo. Para os da minha espécie,  é absurdo - nós jamais iríamos para um lugar daqueles  sem oferecer a mais completa resistência. Mas pode também ser que as pessoas não estejam ENXERGANDO a cerca, porque, como eu disse, ela é bem disfarçada - embora NÃO, é claro, o suficiente para enganar olhos felinos.


Conservo uma certa nostalgia dos bons tempos em que os oranguinhos eram poucos e se limitavam a guinchar do alto das árvores - era irritante, mas em geral eles se calavam diante de um rugido. Os da minha espécie também eram mais numerosos:  infelizmente, os leões, hoje em dia, são tão raros! Muitos migraram, pelo que eu sei;  ouço o eco dos seus rugidos vindos de outras savanas, outros planaltos, outras covas em terras longínquas. Nesta, ficamos pouquíssimos. Curiosos, como sempre: continua a ser irresistível observar o movimento na planície lá embaixo.  Um ou outro oranguinho chega aqui em cima,  por enquanto solitariamente;  é claro que eu sei que, quando terminarem de enfiar todo mundo no estábulo, vão se dirigir para cá, atrás de nós. É inevitável que venham. Uma questão de tempo, apenas.


É um bocado chato que o destino dos felinos nobres tenha sido muitas vezes este, o de morrer lutando contra seu único adversário: o orango predador, um bicho estúpido e fedorento que nos vence pela superioridade numérica - e que NUNCA teria a menor condição de nos enfrentar a não ser assim, em multidões. Mas mesmo a certeza de que eu terei que encarar este desfecho não impede que, para além do vale desconfigurado, o céu seja de um luminoso azul, e  ventos limpos varram as savanas como varriam na minha infância: longe do lamaçal assolado pelo orango, longe dos ratos da peste e do cólera, fica a terra insondável na qual o leão se submete ao Cordeiro, e finalmente cumpre o seu destino ancestral. E é para lá que, como todos os meus companheiros de espécie, eu também partirei um dia.


Enquanto isso, cá fico, do alto desta escarpa, olhando os orangos estabularem os aturdidos, os cegos, os distraídos e os imbecis - como faz a esfinge de pedra que desafiou o tempo e até hoje mira, com a mesma curiosidade, o horizonte iluminado. 


Receba o afeto de sua leonina


Rainha

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