SED TANTUM DIC VERBUM...

...ET SANABITUR ANIMA MEA.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Os macacos e o Brave New World

Diário,


Minha irmã Giselle diz, e eu concordo, que o Brasil é um país tão estúpido, e criou mecanismos tão grotescos em torno da sua própria estupidez, que NADA - inclusive  planos malévolos - pode realmente funcionar por aqui! Quando eu falo das abomináveis intenções do Foro de São Paulo ou dos paradigmas malignos da Nova Ordem Mundial, ela faz um olhar filosófico e diz -  "não se preocupe; não vão conseguir fazer nada disso aqui". 


Como naquele texto cômico a respeito das desventuras dos dois terroristas da Al Qaeda encarregados de bombardear a estátua do Cristo Redentor, que acabaram num hospital do SUS com um ataque severo de diarréia provocado por uma empadinha contaminada, depois de ter sido surrados por traficantes que os confundiram com membros de uma facção rival, a nossa VISCERAL incompetência e grotesca imbecilidade impedem, segundo ela, que qualquer tipo de ação organizada -  boa ou má - possa dar certo no Brasil, sil, sil.


Nosso destino não seria, portanto,  o "Brave New World", devido à nossa absoluta incapacidade de adotar os métodos necessários para a implantação do pavoroso paradigma:  seria, antes, uma espécie de Haiti piorado, no qual analfabetos retardados se auto-destroem numa sequência macabra de manobras de absurda ilogicidade, e onde a preguiça e a burrice competem entre si como "causa mais provável" da esculhambação generalizada - sem que seja possível, evidentemente, se chegar a qualquer conclusão a respeito. NUNCA teríamos a disciplina e a ordem mental indispensáveis para que fosse criada aqui a horrenda distopia huxleyana: e a nossa versão dela consistiria em um bando de imbecis sem moral tentando "administrar", via milhares de macacos mal-adestrados, uma paródia de "sistema" caindo aos pedaços.  


Em sendo assim, "frustramos o demo" - e as hostes do maligno só conseguem pífios resultados, diante da nossa brutal incompetência.


Eu quero estender esta análise, caro diário - para dela tirar uma  tese: a humanidade está se tornando burra, maciçamente estúpida, e é inevitavelmente levada a navegar, cada vez mais, entre centenas de arapucas  idiotas e  perigos fundamentados pela palermice. O primeiro sintoma da burrice visceral é a incapacidade de ligar causa e efeito, o que torna nulo o conceito de "consequência".  Não é que dentro desta imbecilidade "dois mais dois"  não sejam "quatro"; é muito pior que isso: é que  a IDÉIA de "dois mais dois" simplesmente deixa de existir!  Não só "não dá quatro" como não dá rigorosamente porra nenhuma - nem três, nem cinco, e nem quantidade alguma!


Eu sinceramente creio - e é este o tema desta carta de hoje a você - que Antonio Gramsci exatamente não previu  esta consequência, quando montou a sua estratégia de domínio das massas pela via  da imoralização, ou DES-moralização das referidas massas. Antonio Gramsci não sacou que, ao se anular a consciência, fecha-se, concomitantemente, o acesso a um atributo que fundamenta a cognição humana! E sem o qual esta cognição, esta "intelectuação", DEIXA DE OCORRER! A imoralização das massas está sendo conseguida, claramente conseguida, como Gramsci queria - mas trouxe, atrelada a ela,  como "consequência da causa", a completa imbecilização destas mesmas massas! 


É extraordinariamente interessante perceber que o "Brave New World", neste caso,  é uma impossibilidade metafísica - pela óbvia razão de que um bando de macacos não pode ser treinado para manter um sistema, mesmo que cada macaco seja "responsável" apenas por um pedacinho minúsculo deste sistema!  O domínio conseguido pela via da imoralização, da destruição da consciência humana, é uma falácia: o ser que resulta do processo de  imoralização não tem  capacidade cognitiva suficiente para que exista este domínio, muito menos  para que ele "sirva" a algum fim - em outras palavras, a "humanidade"  dominada por esta via simplesmente não será humana, não será "humanidade"! E, sem humanos para mantê-lo, entregue a meros primatas, o "sistema" - qualquer que seja ele - acabará por implodir, por se auto-destruir!


Que estupendamente perfeita CHAVE, que fabuloso Mistério a fechar o círculo de forma absoluta! 


Onde entra o Brasil nesta página ainda tão mal-alinhavada? Bem, entra como uma espécie de "demonstração visível" de duas coisas: da correção da análise da minha irmã e da  minha consequente tese, que eu julgo bastante precisa, e que pretendo posteriormente organizar de maneira mais adequada e menos precária - como você, querido diário, sabe que considero meu dever, minha alegria e meu destino.


Sua sempre sintética, no puro sentido do termo,


Rainha

domingo, 7 de novembro de 2010

Sobre o programa "Painel"

Diário,


Ontem, once more, assisti televisão: creio que o programa sobre a Brigitte Bardot me fez esperar que houvesse, quem sabe, mais alguma coisa interessante no panorama da TV paga (no da TV chamada "aberta"eu tenho certeza de que não há NADA, e só com  alguma indicação confiável eu entraria lá. Não sem antes providenciar uma antena adequada, é claro - implemento que não possuo), que não fossem documentários sobre leões, cavalos marinhos, tubarões (um favorito dos produtores, por alguma razão que me escapa inteiramente: há DEZENAS deles, e o tubarão me parece um animal sumamente desinteressante, if there ever was one! Uma água-viva tem muito mais potencial!), ursos polares ou insetos peçonhentos, aos quais já assisti todos.


Fui devidamente recompensada pelo programa "Painel" - no qual William Waack, dois ex-embaixadores e um historiador da Unicamp conversavam sobre o panorama econômico mundial. Confesso que, quando tomei conhecimento da presença do historiador da Unicamp, quase troquei de canal - para sorte minha, os outros 153.432 canais restantes exibiam uma bagaça tão estúpida que voltei, e decidi encarar fosse o que fosse que viesse pela proa.


Entenda bem, querido diário: não é que o programa, a conversa EM SI tenha me trazido alguma "novidade": mas, de certa forma, me forneceu um tema para reflexão - como você sabe, uma Rainha Caolha DEVE, é óbvio, ENTENDER, ou pelo menos TENTAR ENTENDER,  como funciona a terra de cegos na qual vive. 


Nenhum participante disse bobagem alguma, caro diário: todos os comentários foram pertinentes, sensatos, e corretos. Eu GOSTEI disso! Eu APRECIEI muito! O que eu achei interessantíssimo, e por isto registro aqui  em você, foi o fato de que a análise correta dos fatos NÃO provocou uma conclusão igualmente correta! Na verdade, querido diário, a análise correta não provocou conclusão NENHUMA: os doutos participantes, que demonstraram ser perfeitamente capazes de enxergar com límpida clareza a situação mundial atual, não tiraram desta análise correta NENHUMA conclusão. A análise nasceu, viveu e morreu sem gerar XONGAS!


É unânime a opinião de que o que "há de novo" é o surgimento da China como potência econômica mundial - e, como acuradamente percebido,  esta China está passando rapidamente de potência econômica para potência política, ou seja: está impondo, paulatinamente, um paradigma que não se resume no "ganhar mais dinheiro", e sim inclui o chamado "soft power", que é um modelo COGNITIVO. 
UAU! Ponto para os argutos participantes do programa! 


Também foi igualmente muito bem notado que a China se ocupa em compor parcerias comerciais, mercados: e que o Brasil, ora vejam só, está com a habitual cara de tacho vendo esses mercados lhe escaparem por entre os dedos - e, a continuar assim, se verá reduzido a fornecedor de commodities para a China: "cumprindo um papel de celeiro", como muito bem disse um dos presentes, não me lembro agora exatamente qual. 


Tudo perfeitamente analisado, em suma: e, caro diário, daí nasce - como você certamente já notou - a minha PERPLEXIDADE! Cada vez mais percebo que o paradigma racional PERMITE A ANÁLISE - mas que é o acesso ao Grande Portal que permite a SÍNTESE,  a face que completa a cognição humana, e na verdade a torna "HUMANA"! 


De que adianta analisar perfeitamente, se daí não sairá NENHUMA conclusão, mesmo as mais ÓBVIAS?! Os doutos senhores, pelo visto, não conseguem entender que não se trata exatamente da China - e sim de um MODELO, o modelo que imporá uma Nova Ordem sobre toda a humanidade! 


Levou-se uma hora inteira a explicar minuciosa e corretamente o que é que está acontecendo: e não sobrou nem mesmo um minuto para que se pensasse POR QUE É que tudo isso está acontecendo, e a que tudo isso LEVARÁ! E diga-se de passagem que levará o mundo INTEIRO! 


Sim, caro diário: a China age como age, o Brasil age como age, cada um age como age - e os tais senhores não vão querer me dizer que pensam que é "por acaso"- ou será que vão?! 


Levaram uma hora inteira, diário, para mostrar que "DOIS"  representam  "DOIS", e que o sinal de "mais" representa uma "soma"- e, diante do meu pobre queixo caído, NÃO terminaram o processo, e não falaram do tal do "QUATRO"!  Oh, diário! Eu não lhes nego o conhecimento e a cultura, que faço questão de elogiar! Eu apenas quero deixar aqui o registro do meu abissal espanto diante desta súbita "PARADA", desta espantosa "inconclusão"dos senhores doutores frente a  uma tão clara evidência: o RESULTADO da equação, cuja simplicidade é extrema! 


Sob a égide obrigatória  do NOBLESSE OBLIGE, eu  lhe afirmo, querido diário: celeiro seremos, mas NÃO  "por acaso" -  NADA, como os senhores doutores parecem não saber,  acontece "por acaso"! 


Tal idéia é estúpida, e jamais existiu senão como expressão da estupidez humana: aquela cujo limite se perde, cada vez mais, na distância insondável.


Sua fiel,


Rainha



sábado, 6 de novembro de 2010

Madame Bardot

Diário,


O canal pago GNT exibiu ontem à noite um documentário sobre Brigitte Bardot, que já faz muito tempo é ativista política e conhecida lutadora contra as malvadezas e crueldades para com os animais que a humanidade reiteradamente comete. 


Eça de Queirós escreveu um conto sobre um eremita que, vivendo uma vida  de penitência, solidão e sacrifício, um belo dia fica sabendo que um seu companheiro  está  morrendo à míngua. Para ajudar este companheiro, o  eremita arranca de um leitãozinho que cruza seu caminho o suculento pernil, que leva ao amigo para que ele recupere as forças. Quando finalmente o santo homem morre, e vai ser julgado diante do Criador, num dos pratos da divina balança um anjo coloca seus bons atos, seus sacrifícios, seu isolamento na busca da comunicação com o Transcendente, suas orações e exortações. Toda a corte celeste se maravilha, vendo o prato do Bem Praticado pesar cada vez mais, levando o eremita na direção do Paraíso - e todos já comemoram o evento quando, num gesto final, o anjo coloca no outro prato da balança uma única coisa: um porquinho agonizando numa poça de sangue. Para horror de todos, AQUELE prato pesa MAIS do que o que contém todos os bons atos praticados, e o eremita se despenha  nas profundezas do inferno.


Entre as mocréias de cara alisada e cotovelos pendentes, Madame Bardot, com seu gauloise aceso, suas muletas, seu rugalhal, sua pequena imagem de la Sainte Vierge levada no bolso do casaco, se destaca como um monumento a uma dimensão humana que rarissimamente se vê, sobretudo entre suas contemporâneas de beleza e fama - que me dão a impressão de que se alguém apertá-las vão APITAR, como aqueles bichinhos de borracha feitos para bebês ou cachorrinhos - e que passam a vida na busca desatinada de parceiros cada vez mais jovens. 


Madame explica que por metade da vida teve que parecer bonita sempre, atraente sempre, gostosíssima sempre; e ainda por cima precisava lidar com uma confusão de maridos, e amantes, e namorados: e cansou! Com um senso de humor ao mesmo tempo irônico e alegre, ela comenta - "eu tinha que ser linda todos os dias, e hoje  sou feia todos os dias: estou recuperando o tempo perdido!" 


Pesquisando mais tarde na Internet, verifico que Madame Bardot é coerente e é corajosa, diz na cara de todo mundo verdades julgadas inconvenientes pelo "politicamente correto" - e que, por causa de seus candentes e honestos desaforos, Madame vem colecionando processos nas cortes francesas! Durante o programa, ela diz que sabe perfeitamente que há, neste mundo, grupos de pessoas como ela, e que esses grupos e essas pessoas não conhecem uns aos outros: e é desses que ela gosta, com eles simpatiza, sem precisar conhecê-los de perto.  


Que fique aqui então, diário, esta petite homage a Mme. Brigitte Bardot, por sua sinceridade e por sua aflição diante da insensibilidade e da crueldade dos homens para com a criação indefesa! MOI AUSSI me compadeço deles, moi aussi empatizo inteiramente com ela e sua completa falta de "papas na língua", seus olhos aflitos pela matança a pauladas dos bebês-foca, sua ira incontida diante dos homens que arrancam as unhas dos ursos para fazer com elas um remédio que os chineses acreditam ser eficaz contra a impotência!  "MERDE, allors", diz Brigitte - e digo eu! Que se danem os chineses  e  sua impotência! 


E deixo ainda este bilhetinho a Madame Bardot:


Chère amie, um grande poeta brasileiro chamado Manuel Bandeira escreveu um lindo poema no qual São Pedro, diante da boa  Irene que lhe pede licença para entrar no céu, responde com alegre simplicidade: "Entra, Irene! Você não precisa pedir licença..."   -  


Pegando carona na bela poesia deste formidável poeta, eu lhe afirmo que  o guardião do Grande Portal  também receberá você com a mesma alegria, saudando:  "Soyez la bienvenue, Madame!"


Sua  solidária, mas não solitária,


Rainha



sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Revelação

Diário,


Imagine que hoje, há poucas horas, no caminho para o moldureiro que me presta serviços há anos - estava eu ao volante do velho "possante", quando fechou o sinal em frente à Casa Itararé, antigamente famosa pelos seus salgadinhos enormes e seus importados variadíssimos (hoje já não sei como andam este tamanho e esta variedade, mas assim era). Distraidamente, eu pensava nos filés de excelente haddock que costumava comprar lá, quando - como o "raio fúlgido"do hino - me entra pela cabeça o seguinte pensamento: TODO O CONHECIMENTO HUMANO É REVELADO.


Levei um susto tão grande que meu pé escorregou da embreagem, diário amigo - e o "possante" deu um pinote pra frente e morreu!  Levei o próximo segundo inteirinho digerindo a revelação da revelação - e vi que era  verdade! A diferença entre mim e uma macaca que a esta mesma hora coça a barriga no alto de um pé de sapoti é meramente ESTA: eu tenho acesso à revelação, e ela NÃO! 


Não é à toa que o "segundo elemento" não será encontrado NUNCA, apesar dos ingentes esforços dos cientistas, mesmo dos cientistas quânticos: não se trata de uma "coisa", nem de um "sistema", nem de um "processo": trata-se do acesso a um portal! 


No longuíssimo espaço deste claríssimo segundo, diário, eu percebi por que vagamente me descontentava, até então, o uso do termo "bloqueio"- que eu aplicava, estupidamente, a algo que eu achava que era justamente uma "coisa", um "sistema"ou um "processo"- e me parecia  muito confusa, esta idéia de "bloquear uma coisa", "anular um paradigma"! Mas VEJA: em se tratando de um ACESSO, o acesso a um portal tão absolutamente fundamental, nenhum outro verbo é mais adequado do que "bloquear", e nenhuma outra explicação é tão satisfatória para o fato de que o bloqueio EMBURRECE o bloqueado! Pois se a INFORMAÇÃO revelada não é mais obtida, é óbvio que o indivíduo que fechou o acesso a ela emburrecerá, e emburrecerá de forma avassaladora.


A rigor, a humanidade deixa, velozmente, de compreender até o JÁ revelado: e mesmo este JÁ revelado se PERDERÁ! Quando o último humano bloquear o seu portal pessoal, o GRANDE PORTAL será finalmente FECHADO, e não mais existirá o CONHECIMENTO HUMANO, e portanto não mais haverá HUMANOS! A nossa humanidade, por conseguinte, vagueia segundo escolhas finitas entre dois pontos, entre o Transcendente que  TUDO DÁ  e nós mesmos que TUDO RECEBEMOS - numa série de percepções que entendemos como "o tempo que transcorre", sem saber que na verdade isto é uma interpretação - como qualquer outra - daquilo que recebemos como informação. 


Eu não sei se está sendo possível explicar a você, caro diário, exatamente o que eu  percebi neste tal "átimo de segundo", que se completou em si mesmo e fora do tempo "contabilizável": imagino que NÃO. 


Mas, de qualquer maneira, foi então que o sinal abriu,  eu religuei o "possante" e continuei o meu caminho para o moldureiro que me presta tão bons serviços - deixando para trás a Casa Itararé, onde se vendiam salgados enormes, importados variados, e um excelente filé de haddock.


Cada vez mais grata ao Transcendente que me  alimenta do Mistério, continuo sempre sua maravilhada,


Rainha

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Considerações felinas

Diário,


De cima deste costumado planalto que habito dá pra observar que o orangal está em tumulto: os macaquinhos sem alma e as pessoas estão, ao que parece, se desentendendo mais ativamente do que de hábito! A ruga vertical no meio da minha testa já virou uma funda vala, e estou percebendo que daquele "entrevero" não sairá boa coisa! 


Até adotei a velha posição de esfinge, para poder mais confortavelmente ficar observando o cenário: na verdade, a desconfiguração do cenário! Os oranguinhos arrancaram todas as árvores, e daqui do alto posso perfeitamente perceber que estão encurralando as pessoas para prendê-las numa espécie de curral disfarçado, para o qual algumas vão sem tugir nem mugir,  enquanto outras ainda estão paradas, olhando em volta. Há até as que se encaminham  espontaneamente, com aparente alegria, para  o cercadinho que limita o negócio: depois que os orangos alteraram a paisagem, eu suponho que elas pensem que estarão mais seguras se forem estabuladas, mesmo. Para os da minha espécie,  é absurdo - nós jamais iríamos para um lugar daqueles  sem oferecer a mais completa resistência. Mas pode também ser que as pessoas não estejam ENXERGANDO a cerca, porque, como eu disse, ela é bem disfarçada - embora NÃO, é claro, o suficiente para enganar olhos felinos.


Conservo uma certa nostalgia dos bons tempos em que os oranguinhos eram poucos e se limitavam a guinchar do alto das árvores - era irritante, mas em geral eles se calavam diante de um rugido. Os da minha espécie também eram mais numerosos:  infelizmente, os leões, hoje em dia, são tão raros! Muitos migraram, pelo que eu sei;  ouço o eco dos seus rugidos vindos de outras savanas, outros planaltos, outras covas em terras longínquas. Nesta, ficamos pouquíssimos. Curiosos, como sempre: continua a ser irresistível observar o movimento na planície lá embaixo.  Um ou outro oranguinho chega aqui em cima,  por enquanto solitariamente;  é claro que eu sei que, quando terminarem de enfiar todo mundo no estábulo, vão se dirigir para cá, atrás de nós. É inevitável que venham. Uma questão de tempo, apenas.


É um bocado chato que o destino dos felinos nobres tenha sido muitas vezes este, o de morrer lutando contra seu único adversário: o orango predador, um bicho estúpido e fedorento que nos vence pela superioridade numérica - e que NUNCA teria a menor condição de nos enfrentar a não ser assim, em multidões. Mas mesmo a certeza de que eu terei que encarar este desfecho não impede que, para além do vale desconfigurado, o céu seja de um luminoso azul, e  ventos limpos varram as savanas como varriam na minha infância: longe do lamaçal assolado pelo orango, longe dos ratos da peste e do cólera, fica a terra insondável na qual o leão se submete ao Cordeiro, e finalmente cumpre o seu destino ancestral. E é para lá que, como todos os meus companheiros de espécie, eu também partirei um dia.


Enquanto isso, cá fico, do alto desta escarpa, olhando os orangos estabularem os aturdidos, os cegos, os distraídos e os imbecis - como faz a esfinge de pedra que desafiou o tempo e até hoje mira, com a mesma curiosidade, o horizonte iluminado. 


Receba o afeto de sua leonina


Rainha

sábado, 30 de outubro de 2010

Quando as crianças se tornaram PESSOAS

Diário,


Odd Magne Bakke é dinamarquês, doutor em Teologia, especialista em História da Teologia e História da missão cristã.
Eu não o conhecia - até comprar, através daquele bagulhinho Kindle, da Amazon, o livro chamado "When Children Became People: The Birth Of Childhood in Early Christianity", de sua autoria. 


O livro é muito bom - e, mesmo sem ter ainda terminado de lê-lo  (por causa da minha participação voluntária na atual  bagaça eleitoral, como você sabe, e que eu deixei que virasse a minha vida de pernas pro ar), já me provocou muita reflexão.


A humanidade contemporânea realmente perdeu a noção do SIGNIFICADO do Cristianismo como  paradigma. As pessoas ignoram o que foi o mundo antes dele - e por isso ignoram o que será o mundo sem ele... O mais sublime e elevado modelo que a humanidade conheceu está sendo abandonado - e a perda fará sangrar o homem em TODOS os âmbitos da condição humana. Em cada uma das dimensões que verdadeiramente constituem essa condição, desde as mais extraordinariamente elevadas até as mais simples, que a maioria das pessoas "take for granted" - a FALTA do paradigma cristão anulará conceitos que hoje esta esmagadora maioria não sabe mais de onde vieram:  e portanto não os CREDITA ao Cristianismo, mesmo tendo sido ELE que os trouxe para a humanidade! 


O tamanho deste paradigma, sua importância, a monumental civilização que nele se fundamentou - tudo está sendo PERDIDO: e perdido sem que as pessoas nem sequer saibam, compreendam, o que é que está contido neste TUDO, que o Cristianismo ergueu como a maior defesa, o melhor caminho, a mais precioso MAPA que a humanidade jamais conheceu. Defesa, caminho, mapa - rasgados, jogados fora, vistos como "inúteis", como "dispensáveis"! 


Os imbecis do anti-Cristianismo - como o intolerável Genésio Boff e o insuportável "Frei Betto" - OUSAM falar em "humanismo"- como se a NEGAÇÃO do paradigma cristão pudesse se referir, pudesse ter como objetivo o homem, em sua plena condição! O "humanismo" deles é falso, opaco, a VILÍSSIMA moeda que compra o retrocesso aos tempos em que o destino humano não era conduzido sob o entendimento vertical da nossa integração com o Transcendente Criador. E nos quais, entre outras MILHARES de coisas mal-compreendidas, ou não-compreendidas de modo algum, as crianças nem sequer eram pessoas! TORPES inimigos, estúpidos e cínicos!


Fica aqui a minha gratidão ao teólogo dinamarquês pelo seu livro, que eu SONHO em que todos leiam - e cujo lindo título já expressa uma clara VERDADE: o conceito de  infância NASCEU COM O CRISTIANISMO. 
E este conceito estará perdido quando o Cristianismo terminar como paradigma.


Há mais coisas, diário: mas nem tudo se faz num dia só, e a porcaria da campanha me deixou um tanto "desconcentrada" e necessitada de descanso, confesso! Quero o sossego de fazer desenhos para os amigos, e recopiar receitas das minhas bisavós para inventar um livrinho que me consola imaginar que  possa ser útil para as minhas bisnetas - num hipotético futuro no qual, francamente, não gosto muito nem de PENSAR! São atividades bastante BALSÂMICAS, se você me entende... 


Sua um tanto desolada, mas sempre firme,


Rainha

Ah, o Brasil!...

Diário,


Perdemos o Brasil, eu penso. Andava muito aborrecida com isto, mas de repente me dei conta de que ele já estava perdido há muito tempo! Foi lá trás, em algum longínquo e ensolarado "dia qualquer", que aquilo que era até então algo quantitativo tornou-se qualitativo - e o país chamado Brasil passou a ser mais um domínio do orango predador neste mundo de meu Deus. 


A interlocução, a conversa,  tornou-se difícil: tão difícil que, nos últimos tempos, ela passou a ser - pelo menos para mim - algo a ser deliberadamente BUSCADO, procurado de propósito. Não é mais possível, ou é terrivelmente difícil, FALAR com as pessoas e encontrar quem responda. Entre o coração humano e o duro  caroço que passa pela mesma coisa entre os orangos, ergue-se a parede intransponível da imoralidade.  E entre esses dois paradigmas vaga, desnorteada e babando, a multidão dos imbecilizados, cuja imbecilidade vai se tornando paulatinamente CRÔNICA, como uma espécie de reumatismo  moral que tolhe todos os movimentos do que um dia foi um intelecto.


Não há muito, em termos práticos, POR QUE lutar, nem O QUE defender: o predador avança em cima de uma multidão que JÁ É butim, independentemente deste avanço! 


Ando lendo, para me consolar, os escritos dos que viveram em outros tempos: e você não imagina como foi bom encontrar Hildegarde de Bingen, santa católica,  que gostava de plantar ervas, também de cozinhar, e foi  filósofa extraordinária e  extraordinária visionária - além de desenhar estupendamente, e ilustrar suas visões simbológicas com excepcional maestria! Passei a ser grande admiradora da Sibila do Reno, que entre outras coisas inventou uma linguagem à qual chamou de Lingua Ignota  - com seu próprio alfabeto, é claro:  as Litterae Ignotae - e recebeu a ordem divina de reproduzir suas visões e escrever sobre elas, coisa que lindamente fez! Foi ainda enfermeira, compositora (belíssima música!) e uma pessoa determinada, empenhada e corajosa: a quem ninguém, inclusive as autoridades eclesiásticas do seu tempo, jamais se opôs. E tudo isto sem jamais deixar de ser humana, alegre, informal e SIMPLES - sem um pingo de nhenhenhé!
E, imagine: Hildegarde gostava de se corresponder, e o fez com os Papas Eugenio III e Anastácio IV, e ainda com Bernardo de Clairvaux, o homem do Claro Vale, a quem eu também tanto admiro!


Não me parece que alguém tenha vivido melhor, mais completa e mais interessante vida. Como você vê, diário, ando procurando amizades na Idade Média - onde infalivelmente as ENCONTRO! 


Enfim: entre mim e a abadessa beneditina medieval se estabeleceu esta enorme empatia e verdadeira afeição -  que tem me servido de grande consolo na convivência com tanta coisa desagradável e francamente irritante do "mundo atual". Os orangos vão levar seu butim, que os acompanhará com a palermice esperada, e até com alegria. 


Não resta muita coisa a fazer senão assistir, e enquanto assisto fazer as mesmas coisas que fazia a minha amiga Hildegarde: senão com a mesma maestria incomparável, com certeza com a mesma alegria.


Sua medieval,


Rainha