SED TANTUM DIC VERBUM...

...ET SANABITUR ANIMA MEA.

sábado, 6 de novembro de 2010

Madame Bardot

Diário,


O canal pago GNT exibiu ontem à noite um documentário sobre Brigitte Bardot, que já faz muito tempo é ativista política e conhecida lutadora contra as malvadezas e crueldades para com os animais que a humanidade reiteradamente comete. 


Eça de Queirós escreveu um conto sobre um eremita que, vivendo uma vida  de penitência, solidão e sacrifício, um belo dia fica sabendo que um seu companheiro  está  morrendo à míngua. Para ajudar este companheiro, o  eremita arranca de um leitãozinho que cruza seu caminho o suculento pernil, que leva ao amigo para que ele recupere as forças. Quando finalmente o santo homem morre, e vai ser julgado diante do Criador, num dos pratos da divina balança um anjo coloca seus bons atos, seus sacrifícios, seu isolamento na busca da comunicação com o Transcendente, suas orações e exortações. Toda a corte celeste se maravilha, vendo o prato do Bem Praticado pesar cada vez mais, levando o eremita na direção do Paraíso - e todos já comemoram o evento quando, num gesto final, o anjo coloca no outro prato da balança uma única coisa: um porquinho agonizando numa poça de sangue. Para horror de todos, AQUELE prato pesa MAIS do que o que contém todos os bons atos praticados, e o eremita se despenha  nas profundezas do inferno.


Entre as mocréias de cara alisada e cotovelos pendentes, Madame Bardot, com seu gauloise aceso, suas muletas, seu rugalhal, sua pequena imagem de la Sainte Vierge levada no bolso do casaco, se destaca como um monumento a uma dimensão humana que rarissimamente se vê, sobretudo entre suas contemporâneas de beleza e fama - que me dão a impressão de que se alguém apertá-las vão APITAR, como aqueles bichinhos de borracha feitos para bebês ou cachorrinhos - e que passam a vida na busca desatinada de parceiros cada vez mais jovens. 


Madame explica que por metade da vida teve que parecer bonita sempre, atraente sempre, gostosíssima sempre; e ainda por cima precisava lidar com uma confusão de maridos, e amantes, e namorados: e cansou! Com um senso de humor ao mesmo tempo irônico e alegre, ela comenta - "eu tinha que ser linda todos os dias, e hoje  sou feia todos os dias: estou recuperando o tempo perdido!" 


Pesquisando mais tarde na Internet, verifico que Madame Bardot é coerente e é corajosa, diz na cara de todo mundo verdades julgadas inconvenientes pelo "politicamente correto" - e que, por causa de seus candentes e honestos desaforos, Madame vem colecionando processos nas cortes francesas! Durante o programa, ela diz que sabe perfeitamente que há, neste mundo, grupos de pessoas como ela, e que esses grupos e essas pessoas não conhecem uns aos outros: e é desses que ela gosta, com eles simpatiza, sem precisar conhecê-los de perto.  


Que fique aqui então, diário, esta petite homage a Mme. Brigitte Bardot, por sua sinceridade e por sua aflição diante da insensibilidade e da crueldade dos homens para com a criação indefesa! MOI AUSSI me compadeço deles, moi aussi empatizo inteiramente com ela e sua completa falta de "papas na língua", seus olhos aflitos pela matança a pauladas dos bebês-foca, sua ira incontida diante dos homens que arrancam as unhas dos ursos para fazer com elas um remédio que os chineses acreditam ser eficaz contra a impotência!  "MERDE, allors", diz Brigitte - e digo eu! Que se danem os chineses  e  sua impotência! 


E deixo ainda este bilhetinho a Madame Bardot:


Chère amie, um grande poeta brasileiro chamado Manuel Bandeira escreveu um lindo poema no qual São Pedro, diante da boa  Irene que lhe pede licença para entrar no céu, responde com alegre simplicidade: "Entra, Irene! Você não precisa pedir licença..."   -  


Pegando carona na bela poesia deste formidável poeta, eu lhe afirmo que  o guardião do Grande Portal  também receberá você com a mesma alegria, saudando:  "Soyez la bienvenue, Madame!"


Sua  solidária, mas não solitária,


Rainha



sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Revelação

Diário,


Imagine que hoje, há poucas horas, no caminho para o moldureiro que me presta serviços há anos - estava eu ao volante do velho "possante", quando fechou o sinal em frente à Casa Itararé, antigamente famosa pelos seus salgadinhos enormes e seus importados variadíssimos (hoje já não sei como andam este tamanho e esta variedade, mas assim era). Distraidamente, eu pensava nos filés de excelente haddock que costumava comprar lá, quando - como o "raio fúlgido"do hino - me entra pela cabeça o seguinte pensamento: TODO O CONHECIMENTO HUMANO É REVELADO.


Levei um susto tão grande que meu pé escorregou da embreagem, diário amigo - e o "possante" deu um pinote pra frente e morreu!  Levei o próximo segundo inteirinho digerindo a revelação da revelação - e vi que era  verdade! A diferença entre mim e uma macaca que a esta mesma hora coça a barriga no alto de um pé de sapoti é meramente ESTA: eu tenho acesso à revelação, e ela NÃO! 


Não é à toa que o "segundo elemento" não será encontrado NUNCA, apesar dos ingentes esforços dos cientistas, mesmo dos cientistas quânticos: não se trata de uma "coisa", nem de um "sistema", nem de um "processo": trata-se do acesso a um portal! 


No longuíssimo espaço deste claríssimo segundo, diário, eu percebi por que vagamente me descontentava, até então, o uso do termo "bloqueio"- que eu aplicava, estupidamente, a algo que eu achava que era justamente uma "coisa", um "sistema"ou um "processo"- e me parecia  muito confusa, esta idéia de "bloquear uma coisa", "anular um paradigma"! Mas VEJA: em se tratando de um ACESSO, o acesso a um portal tão absolutamente fundamental, nenhum outro verbo é mais adequado do que "bloquear", e nenhuma outra explicação é tão satisfatória para o fato de que o bloqueio EMBURRECE o bloqueado! Pois se a INFORMAÇÃO revelada não é mais obtida, é óbvio que o indivíduo que fechou o acesso a ela emburrecerá, e emburrecerá de forma avassaladora.


A rigor, a humanidade deixa, velozmente, de compreender até o JÁ revelado: e mesmo este JÁ revelado se PERDERÁ! Quando o último humano bloquear o seu portal pessoal, o GRANDE PORTAL será finalmente FECHADO, e não mais existirá o CONHECIMENTO HUMANO, e portanto não mais haverá HUMANOS! A nossa humanidade, por conseguinte, vagueia segundo escolhas finitas entre dois pontos, entre o Transcendente que  TUDO DÁ  e nós mesmos que TUDO RECEBEMOS - numa série de percepções que entendemos como "o tempo que transcorre", sem saber que na verdade isto é uma interpretação - como qualquer outra - daquilo que recebemos como informação. 


Eu não sei se está sendo possível explicar a você, caro diário, exatamente o que eu  percebi neste tal "átimo de segundo", que se completou em si mesmo e fora do tempo "contabilizável": imagino que NÃO. 


Mas, de qualquer maneira, foi então que o sinal abriu,  eu religuei o "possante" e continuei o meu caminho para o moldureiro que me presta tão bons serviços - deixando para trás a Casa Itararé, onde se vendiam salgados enormes, importados variados, e um excelente filé de haddock.


Cada vez mais grata ao Transcendente que me  alimenta do Mistério, continuo sempre sua maravilhada,


Rainha

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Considerações felinas

Diário,


De cima deste costumado planalto que habito dá pra observar que o orangal está em tumulto: os macaquinhos sem alma e as pessoas estão, ao que parece, se desentendendo mais ativamente do que de hábito! A ruga vertical no meio da minha testa já virou uma funda vala, e estou percebendo que daquele "entrevero" não sairá boa coisa! 


Até adotei a velha posição de esfinge, para poder mais confortavelmente ficar observando o cenário: na verdade, a desconfiguração do cenário! Os oranguinhos arrancaram todas as árvores, e daqui do alto posso perfeitamente perceber que estão encurralando as pessoas para prendê-las numa espécie de curral disfarçado, para o qual algumas vão sem tugir nem mugir,  enquanto outras ainda estão paradas, olhando em volta. Há até as que se encaminham  espontaneamente, com aparente alegria, para  o cercadinho que limita o negócio: depois que os orangos alteraram a paisagem, eu suponho que elas pensem que estarão mais seguras se forem estabuladas, mesmo. Para os da minha espécie,  é absurdo - nós jamais iríamos para um lugar daqueles  sem oferecer a mais completa resistência. Mas pode também ser que as pessoas não estejam ENXERGANDO a cerca, porque, como eu disse, ela é bem disfarçada - embora NÃO, é claro, o suficiente para enganar olhos felinos.


Conservo uma certa nostalgia dos bons tempos em que os oranguinhos eram poucos e se limitavam a guinchar do alto das árvores - era irritante, mas em geral eles se calavam diante de um rugido. Os da minha espécie também eram mais numerosos:  infelizmente, os leões, hoje em dia, são tão raros! Muitos migraram, pelo que eu sei;  ouço o eco dos seus rugidos vindos de outras savanas, outros planaltos, outras covas em terras longínquas. Nesta, ficamos pouquíssimos. Curiosos, como sempre: continua a ser irresistível observar o movimento na planície lá embaixo.  Um ou outro oranguinho chega aqui em cima,  por enquanto solitariamente;  é claro que eu sei que, quando terminarem de enfiar todo mundo no estábulo, vão se dirigir para cá, atrás de nós. É inevitável que venham. Uma questão de tempo, apenas.


É um bocado chato que o destino dos felinos nobres tenha sido muitas vezes este, o de morrer lutando contra seu único adversário: o orango predador, um bicho estúpido e fedorento que nos vence pela superioridade numérica - e que NUNCA teria a menor condição de nos enfrentar a não ser assim, em multidões. Mas mesmo a certeza de que eu terei que encarar este desfecho não impede que, para além do vale desconfigurado, o céu seja de um luminoso azul, e  ventos limpos varram as savanas como varriam na minha infância: longe do lamaçal assolado pelo orango, longe dos ratos da peste e do cólera, fica a terra insondável na qual o leão se submete ao Cordeiro, e finalmente cumpre o seu destino ancestral. E é para lá que, como todos os meus companheiros de espécie, eu também partirei um dia.


Enquanto isso, cá fico, do alto desta escarpa, olhando os orangos estabularem os aturdidos, os cegos, os distraídos e os imbecis - como faz a esfinge de pedra que desafiou o tempo e até hoje mira, com a mesma curiosidade, o horizonte iluminado. 


Receba o afeto de sua leonina


Rainha

sábado, 30 de outubro de 2010

Quando as crianças se tornaram PESSOAS

Diário,


Odd Magne Bakke é dinamarquês, doutor em Teologia, especialista em História da Teologia e História da missão cristã.
Eu não o conhecia - até comprar, através daquele bagulhinho Kindle, da Amazon, o livro chamado "When Children Became People: The Birth Of Childhood in Early Christianity", de sua autoria. 


O livro é muito bom - e, mesmo sem ter ainda terminado de lê-lo  (por causa da minha participação voluntária na atual  bagaça eleitoral, como você sabe, e que eu deixei que virasse a minha vida de pernas pro ar), já me provocou muita reflexão.


A humanidade contemporânea realmente perdeu a noção do SIGNIFICADO do Cristianismo como  paradigma. As pessoas ignoram o que foi o mundo antes dele - e por isso ignoram o que será o mundo sem ele... O mais sublime e elevado modelo que a humanidade conheceu está sendo abandonado - e a perda fará sangrar o homem em TODOS os âmbitos da condição humana. Em cada uma das dimensões que verdadeiramente constituem essa condição, desde as mais extraordinariamente elevadas até as mais simples, que a maioria das pessoas "take for granted" - a FALTA do paradigma cristão anulará conceitos que hoje esta esmagadora maioria não sabe mais de onde vieram:  e portanto não os CREDITA ao Cristianismo, mesmo tendo sido ELE que os trouxe para a humanidade! 


O tamanho deste paradigma, sua importância, a monumental civilização que nele se fundamentou - tudo está sendo PERDIDO: e perdido sem que as pessoas nem sequer saibam, compreendam, o que é que está contido neste TUDO, que o Cristianismo ergueu como a maior defesa, o melhor caminho, a mais precioso MAPA que a humanidade jamais conheceu. Defesa, caminho, mapa - rasgados, jogados fora, vistos como "inúteis", como "dispensáveis"! 


Os imbecis do anti-Cristianismo - como o intolerável Genésio Boff e o insuportável "Frei Betto" - OUSAM falar em "humanismo"- como se a NEGAÇÃO do paradigma cristão pudesse se referir, pudesse ter como objetivo o homem, em sua plena condição! O "humanismo" deles é falso, opaco, a VILÍSSIMA moeda que compra o retrocesso aos tempos em que o destino humano não era conduzido sob o entendimento vertical da nossa integração com o Transcendente Criador. E nos quais, entre outras MILHARES de coisas mal-compreendidas, ou não-compreendidas de modo algum, as crianças nem sequer eram pessoas! TORPES inimigos, estúpidos e cínicos!


Fica aqui a minha gratidão ao teólogo dinamarquês pelo seu livro, que eu SONHO em que todos leiam - e cujo lindo título já expressa uma clara VERDADE: o conceito de  infância NASCEU COM O CRISTIANISMO. 
E este conceito estará perdido quando o Cristianismo terminar como paradigma.


Há mais coisas, diário: mas nem tudo se faz num dia só, e a porcaria da campanha me deixou um tanto "desconcentrada" e necessitada de descanso, confesso! Quero o sossego de fazer desenhos para os amigos, e recopiar receitas das minhas bisavós para inventar um livrinho que me consola imaginar que  possa ser útil para as minhas bisnetas - num hipotético futuro no qual, francamente, não gosto muito nem de PENSAR! São atividades bastante BALSÂMICAS, se você me entende... 


Sua um tanto desolada, mas sempre firme,


Rainha

Ah, o Brasil!...

Diário,


Perdemos o Brasil, eu penso. Andava muito aborrecida com isto, mas de repente me dei conta de que ele já estava perdido há muito tempo! Foi lá trás, em algum longínquo e ensolarado "dia qualquer", que aquilo que era até então algo quantitativo tornou-se qualitativo - e o país chamado Brasil passou a ser mais um domínio do orango predador neste mundo de meu Deus. 


A interlocução, a conversa,  tornou-se difícil: tão difícil que, nos últimos tempos, ela passou a ser - pelo menos para mim - algo a ser deliberadamente BUSCADO, procurado de propósito. Não é mais possível, ou é terrivelmente difícil, FALAR com as pessoas e encontrar quem responda. Entre o coração humano e o duro  caroço que passa pela mesma coisa entre os orangos, ergue-se a parede intransponível da imoralidade.  E entre esses dois paradigmas vaga, desnorteada e babando, a multidão dos imbecilizados, cuja imbecilidade vai se tornando paulatinamente CRÔNICA, como uma espécie de reumatismo  moral que tolhe todos os movimentos do que um dia foi um intelecto.


Não há muito, em termos práticos, POR QUE lutar, nem O QUE defender: o predador avança em cima de uma multidão que JÁ É butim, independentemente deste avanço! 


Ando lendo, para me consolar, os escritos dos que viveram em outros tempos: e você não imagina como foi bom encontrar Hildegarde de Bingen, santa católica,  que gostava de plantar ervas, também de cozinhar, e foi  filósofa extraordinária e  extraordinária visionária - além de desenhar estupendamente, e ilustrar suas visões simbológicas com excepcional maestria! Passei a ser grande admiradora da Sibila do Reno, que entre outras coisas inventou uma linguagem à qual chamou de Lingua Ignota  - com seu próprio alfabeto, é claro:  as Litterae Ignotae - e recebeu a ordem divina de reproduzir suas visões e escrever sobre elas, coisa que lindamente fez! Foi ainda enfermeira, compositora (belíssima música!) e uma pessoa determinada, empenhada e corajosa: a quem ninguém, inclusive as autoridades eclesiásticas do seu tempo, jamais se opôs. E tudo isto sem jamais deixar de ser humana, alegre, informal e SIMPLES - sem um pingo de nhenhenhé!
E, imagine: Hildegarde gostava de se corresponder, e o fez com os Papas Eugenio III e Anastácio IV, e ainda com Bernardo de Clairvaux, o homem do Claro Vale, a quem eu também tanto admiro!


Não me parece que alguém tenha vivido melhor, mais completa e mais interessante vida. Como você vê, diário, ando procurando amizades na Idade Média - onde infalivelmente as ENCONTRO! 


Enfim: entre mim e a abadessa beneditina medieval se estabeleceu esta enorme empatia e verdadeira afeição -  que tem me servido de grande consolo na convivência com tanta coisa desagradável e francamente irritante do "mundo atual". Os orangos vão levar seu butim, que os acompanhará com a palermice esperada, e até com alegria. 


Não resta muita coisa a fazer senão assistir, e enquanto assisto fazer as mesmas coisas que fazia a minha amiga Hildegarde: senão com a mesma maestria incomparável, com certeza com a mesma alegria.


Sua medieval,


Rainha





domingo, 7 de fevereiro de 2010

O Braviu

Diário,


Depois de ler a Veja e o Globo em sua edição dominical, me veio à lembrança um programa de rádio da minha infância, no qual um personagem chamado "Asnésio" conversava com seu pai "Leôncio" e compunha redações muito interessantes - aliás, MINTO! Este era um personagem da televisão! O do rádio, se não me engano, era um "Burraldo"! 


Ingênuos e excelentes tempos aqueles, em que os burros eram PERSONAGENS! Em que alguém CRIAVA burrices das quais a gente RIA, achando engraçadíssimo aquilo! Hoje, caro diário, não faria o MENOR SENTIDO fazer tal coisa: as burrices são tantas, tão estapafúrdias e tão REAIS que não há a menor lógica em esfurucar a cuca para compor um esquete; e nem ninguém acharia graça nenhuma, já que a burrice é precisamente o MODELO atual. 


Leio aqui que há uma exposição no Rio - eu sempre xereto as exposições, claro - na qual um dos artistas apresenta a obra "O Hidrante", composta de um hidrante. A revista avisa, não sem uma certa dose de ironia, que o referido equipamento contra incêndios foi elevado à categoria de "obra-de-arte".Também leio que, em uma escola de Maceió, 30% dos alunos são viciados em crack e fumam maconha nas salas de aula. A diretora já foi ameaçada de morte e não quer mais ser diretora do referido antro, mas não há ninguém para substituí-la. O colunista e escritor Veríssimo defende o direito das mulheres de "controlar seus ventres"- o que me provoca a súbita e surrealista visão  de milhões de mulheres fazendo uma passeata brandindo cartazes com "abaixo a diarréia!" -  e assassinar seus filhos, se porventura houver algum por lá. Indevidamente, é claro. Expulsa o folgadinho e mata logo de uma vez, que é pra ele aprender a não se meter onde não é chamado. O mesmo orango completa o raciossímio (belo termo azevediano!) censurando os "religiosos" por não dispensarem aos assassinos hediondos o mesmo tratamento que dispensam aos inocentes indefesos, e - vilania máxima! - quererem para esses últimos a vida e para os outros a pena de morte - coisa que ele considera INCOMPREENSÍVEL.  Também afirma que o casamento gay vai salvar a instituição do matrimonio, que está "falida e decadente", e pelo visto vai ganhar um saudável revival.


O suplemento dominical apresenta uma reportagem na qual uma juíza e um policial fazem a apologia da legalização das drogas. Não basta descriminalizar: o negócio, segundo ambos, é "legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas". Segundo a juíza, "moralidade é algo individual" - como bunda, cada um tem a sua. E mais! A perspicaz oranga nota que, "por serem substâncias psico-ativas, são fáceis de serem demonizadas." Uau! É verdade, juíza, é verdade! Com que facilidade espantosa se demonizam substâncias psicoativas... Amazing. Vide os 30% dos alunos da escola da diretora ameaçada de morte: mór demonização, né não? Tadinhos.


Um leitor reclama de que não chamam Luifináfio de "presidente Lula", chamam só de "Lula". Ele considera essas pessoas preconceituosas e arrogantes. Bom, nessa eu não me enquadro, eu o chamo de "o bugre". 


Paulo Coelho, naquele tom maluco-beleza que passou a ser a sua segunda natureza, nos avisa doutoralmente que nenhum caminho leva a lugar nenhum, e os desafios "não são bons nem ruins: apenas desafios". Isso, é claro, se você for um "guerreiro sagrado". Não consigo imaginar nada mais estúpido, idiota e imbecil do que querer vencer um desafio meramente porque se trata de um desafio. Gostaria de estender um fio de pendurar roupa entre duas janelas do décimo andar de edifícios confrontantes e dizer a ele - Ei, Paulo, encara e atravessa - ou vai "amarelar"? 


A ÚNICA coisa que se salva do jornal e da revista é a carta de um leitor chamado Rodolpho que compara a aceitação de gays assumidos nas Forças Armadas a contratar um gago para desempenhar a função de telefonista.
Valeu, Rodolpho! Se não fosse pela sua carta, era perda total.


A VOZ do personagem defunto ecoa num rádio há muito tempo emudecido, a não ser por este remoto sinal dentro de mim - "O Braviu. O Bra-viu-é-um-pa-ís-de-ma-ca-cos-on-de-tu-do-é-mui-to-in-te-res-san-te". 


Meu Deus, o que fizeram do meu país, a minha pátria amada? 


Nem dá vontade de escrever mais nada. O jornal e a revista permanecem em cima da mesinha, como um testemunho do horror, do horror, do horror. Não há lixo para embrulhar, e me parece mais adequado, pelo menos como um ato simbólico, queimá-los na lareira, apesar do caloréu que nos assola. Coisa que eu farei em seguida.Em protesto pelas ações, pelas defesas, pelas reportagens, por tudo.


Sua DESOLADA,


Rainha

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Vinte e sete bodes e ainda contando...

Diário,


O que é AQUILO? "EIXO ORIENTADOR"? "DIRETRIZ"?


Em minutos, chegaremos à sala 101. Retirem os sapatos na entrada e preencham as duas vias da  ficha  azul.. Quem tem alguma obturação de ouro, passe para o lado de cá. Próteses de titânio, atrás daquele senhor ali, que acabou de cair. A retirada é praticamente indolor. Eu disse "praticamente", senhora. Titânio é importante para a indústria nacional. A senhora está querendo se opor à geração de empregos para o proletariado? Ah, bom. Então silêncio! Estamos aqui para garantir os direitozumanos, exigência da sociedade depois de amplo debate. Como, que debate? Dirija-se àquela fila longa ali do canto, senhor. A dos desmemoriados. O senhor será examinado por nossos psicólogos, e  terá a oportunidade de repetir o amplo debate palavra por palavra, e se acertar tudo poderemos reconsiderar, senhor. Nosso objetivo aqui  é preservar o direito à memória e à verdade. 


"ÓRGÃOS E ENTIDADES ENVOLVIDOS NAS ORGANIZAÇÕES PROGRAMÁTICAS"? "ELABORAR OS PLANOS DE AÇÃO"?


Os proprietários de imóveis com até cem metros quadrados dirijam-se ao guichê quatro. Mantenham os títulos de propriedade em mãos. Aquele em que está o dirigente com o boné com a sigla M, S, T, senhora. Se será devolvido? Somente depois da análise, senhora. Não sei lhe informar em quanto tempo, senhor. A análise é plural e transversal, demora um pouco. Imóveis acima de cem metros quadrados é ali naquela fila, guichê cinco, a do nosso dirigente com a camiseta com a imagem do Che. CHE, senhor. Aquele que também está ali no retrato na parede, exatamente. Contribuam para a agilização do processo de transferência de renda. Em ordem, senhora. Imóvel de duzentos metros quadrados é... dirija-se à outra sala ao lado, senhora. Aquela com o cartaz com uma foice e um martelo amarelos em fundo vermelho, não tem como errar.Deixe os sapatos na entrada. SAPATOS, senhora! Alguma obturação de ouro? Pinos? Próteses? Marca-passo? Stent? A retirada é praticamente indolor, senhora. Sim, é feita por nosso pessoal especializado, dos grupos sociais vulnerabilizados. Grupos sociais vul-ne-ra-bi-li-za-dos, senhora. Para reaproveitamento. A senhora já ficou com isso muito tempo, agora deve dar a vez a outro, senhora.


"GRAU DE UTILIZAÇÃO DA TERRA"? "TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS"?


 Preencher o terceiro formulário em três vias, de cor verde. Não-homossexuais dirijam-se à sala 13, para triagem. Sapatos na entrada. Por aí não, senhor. Aí é a sala dos cidadãos dos complexos Brasil-1 e Brasil-2, somente é permitida a entrada de pessoas com crachá de indígena ou de etnias africanas. Com comprovante autenticado de perseguição étnica. Ah, o senhor tem o crachá... Mas vejo que está sem o comprovante de perseguido, senhor. Está sendo distribuído ali naquela mesa. Sim, é indispensável. Homossexuais é na sala ao lado, senhora. Senhor. Pode levar o menor, senhor. Senhora. Sim, inteiramente gratuita. Marque um x na ficha de opção sexual, senhor. Pode marcar pela criança também, claro. Ainda não decidiu? Nossa equipe de transexuais lhe dará a indicação então, senhor. Senhora. Para seu...sua...err...descendente também. Priorizamos a decisão individual por enquanto. O programa de alteração sexual coletiva ainda não está completamente implantado. 


"CONSELHOS GESTORES DO FUNDO NACIONAL DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL"? 
Profissionais de sexo, crachá à esquerda. Não, não há outra categoria, senhora: só profissionais de sexo e quebradoras de côco. Para as outras categorias não há necessidade de crachá. Fila ali perto da porta, retirar os sapatos na saída. Obturações de ouro, próteses, marca-passo, e stents ali ao lado. Sigam o nosso funcionário que leva a pessoa na maca.Não sei lhe informar, senhora. A senhora conhece a pessoa? Os parentes serão informados se for o caso, senhora. O procedimento é praticamente indolor. Não se pode impedir a escalada dos direitos do proletariado. 


Sweet Lord Jesus.


E eu não cheguei nem na metade.


Sua enfurecida, embora ainda contida,


Rainha